2 de fevereiro é um dia que não me permito faltar.
Criada na beira da praia, sem nunca ter morado numa cidade longe do mar, fui realmente conquistada pela Orixá que mais se assentou no Brasil. Neste ano, então, o dia de Iemanjá estava forte, com ares de ano novo, já me convocando desde bem antes, ou seria só a ansiedade do nosso janeiro que parecia não ter fim. Quem sabe ainda, era esse azul todo, cor de Júpiter, o grande benéfico, que rege nosso ano 2025, e que parece refletir mais nessas ondas de calor.
Foi também semana de lua nova e início do ano novo no calendário chinês. Entramos no ano da serpente de madeira! Mas como pouco entendo de cultura chinesa, e também não posso deixar meu amadorismo místico dominar o tom desta newsletter e sua altiva literatura, termino aqui a introdução sobre a aura auspiciosa do dia de Iemanjá em 2025, contando que foi ali, já duas oferendas feitas antes mesmo do domingo, que decidi que o tema desta edição seria a intuição.
Andando na praia, pois tenho como um dos meus hábitos criativos mais estimados caminhar na beira do mar, caderninho na bolsa, reparo que tem um ponto da caminhada em que a água me chama. Eu olho e sei que ali é o melhor ponto para mergulhar. Muitas vezes, eu ignoro, sigo até o final, mente cartesiana, para cumprir a rotina de andar até a pedra, só então mergulhar, e voltar a praia inteira enquanto o biquíni seca.
Penso que a intuição é como aquele chamado da água, algo que se sabe.
O pensamento dá tanto trabalho que às vezes a gente esquece que também é uma delícia. Eu tenho enorme prazer na concatenação de ideias, em suas conexões inusitadas, na inteligência da mente. Mas também é ardilosa a danada. Tem hora que podem ser tantos os pensamentos, e seus estímulos e expansões, que parece que vamos pifar. A mente se centralizou em excesso, está sobrecarregada. E a intuição, num primeiro momento, me pareceu algo como um pensamento fácil, prazeroso. Um pensamento puro?
Eu mergulho e peço: Iemanjá, proteja meu orí. Em todas as caminhadas e mergulhos, mesmo no mais auspicioso dos 2 de fevereiro, o pedido se repete. Como mantra, como ladainha. Iemanjá, proteja meu orí. É esse o pedido para a mãe das cabeças.
Ali, cabeça de sol e sal, percebo que a intuição não é um pensamento. Pelo menos não só. A intuição é um bicho híbrido. Como a matéria do mar, da água que nos mistura. A intuição acontece sem a divisão coração e mente, sentimento e pensamento. Sua incapturável alquimia precisa justamente de territórios fluidos para acontecer.

Que a intuição é uma voz que nos é soprada no ouvido já sabemos. Também que aprender a escutar e distinguir essa voz é fundamental para quem trabalha com criação. Um próximo passo, então, é confiar no que se escuta. E agir. Mesmo na água, a intuição não se encaixa, nem no ar e seu sopro. Pois veja: sem fogo, a intuição não tem efetividade.
Para fortalecer o lado quente da intuição, recomendo doses de amadorismo.
Práticas menos racionalizadas. Espaços de criação e expressão em que podemos ser mais instintivas. Como Clarice Lispector que pintou mais de 20 quadros com tinta a óleo e caneta esferográfica: “O que me descontrai, por incrível que pareça é pintar, e não ser pintora de forma alguma, e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que dá gosto”.
Hilda Hilst deixou mais de 150 desenhos e aquarelas e dizia que usava seus desenhos para respirar. “Às vezes, quando fico muito tensa e não consigo escrever, aí eu pinto, desenho. São as horas da respirada, quando não dá para dizer nada, quando está muito difícil tudo. Aí então, eu desenho um pouco”
Também é possível cultivar o amadorismo na própria prática de escrita. Eu faço isso por meio dos cadernos. Meu sonho era ter aquelas cadernos de artista, lindíssimos, cheio de letterings, colagens, desenhos. Mas na realidade meus cadernos são bem mais da ordem do fluxo, do rabisco, da bagunça.
Por anos também mantive o hábito de queimar papéis. Eu tinha pelo menos um caderno em que era muito livre, mas livre mesmo (meo deos, ninguém se salvava ali!). E todo ano ao visitar minha família no natal, eu pegava a antiga bacia de alumínio e ia para o fundo do quintal fazer meu ritual de purificação daquele mal todo, socorro, saído de meu próprio punho.
A intuição também pode estar em fases mais rígidas da escrita. Não só nos impulsos iniciais, mas também no momento de dar estrutura e buscar contornos ao que se cria. Ao trabalho de ourivesaria do texto costumo chamar de lapidação - um dos quatro movimentos criativos que trabalho em meus acompanhamentos e oficinas (farejar, investigar, experimentar, lapidar).
Na lapidação, é quando a paciência e o tempo fabricam tesouros. É o momento da terra.
Acontece que sem a proteção da sedutora e acolhedora inspiração dos começos, podemos ficar mais vulneráveis a pensamentos de exigência, perfeccionismo e insegurança. Uma terra tão dura, que vira pedra.
Uma coisa que aprendi sobre a lapidação é que não deixamos apenas cair palavras, mas também nosso ideal de como deveríamos escrever. Afinal, vamos sempre criar de maneira incompleta e imperfeita. E toda forma implica uma escolha.
Como meu tema do ano é justamente o enraizamento, me sinto bem ao pensar que pelo menos a terra da intuição é arejada e macia.
Afinal, assim como a cabeça boa, a intuição está acostumada a perder.
(antes dos avisos finais, compartilho o poema “A arte de perder”, de Elizabeth Bishop, outra escritora que também pintava e dizia de suas pinturas: “they are Not Art – NOT AT ALL”.)
Avisos finais:
»Para quem tem desejo de escrever, tem um projeto literário (da ideia à finalização), quer se aprofundar em seus processos de criação, ou deseja escrever uma narrativa de si para fundamentar seus trabalhos autorais, escreva para robertalmalta@gmail.com para o acompanhamento de escrita de 2025. Saiba mais aqui.
»Todos que se inscreveram na newsletter na primeira e segunda edição vão receber o e-book A palavra e o mar, de graça, na semana após o carnaval, para começar o ano criativo cheio das águas do mar. Se ainda não se inscreveu, assine grátis!
Muito bom, Roberta. Gostei de saber do teu processo de purificação. Eu fazia algo semelhante: não queimava meus escritos, mas os picotava de forma que nem o mais competente curioso pudesse juntar os pedacinhos como um quebra-cabeça. Escrever é muito perigoso, e toda aquela minha verdade desnuda posta no papel podia me entregar aos leões, haha. Ainda hoje escrevo com o veneno escorrendo entre os dedos, mas já não me livro dos escritos. Dia desses, os enterrarei todos no fundo da horta. :)